Férias é época de tirar a cabeça do trabalho e das responsabilidades do ano todo e recarregar o corpo e a mente. Eu acredito que esse distanciamento, além de ser essencial pra nossa saúde, também é uma ótima oportunidade de viver experiências que nos permitem enxergar com mais clareza a nossa vida e o rumo que estamos dando pra ela.

Este ano eu aproveitei minha liberdade de freela e me dei uma folga pra participar do evento Burning Man. Trata-se de um evento que reúne 70 mil pessoas todos anos no meio de um deserto totalmente inóspito nos Estados Unidos, em uma cidade temporária que só existe durante os 7 dias do evento, e onde todas essas pessoas são incentivadas a criar algo incrível, desde obras de arte e sets de música eletrônica até experiências bizarras.

O principal ponto que diferencia o Burning Man da maioria dos grandes festivais que acontecem no mundo todo é o forte senso de comunidade.

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Lá não tem line-up com banda famosa nem parque de diversões montado pra você só chegar e aproveitar. Tudo o que existe lá é criado e recriado constantemente pelas pessoas que participam, ou seja, você. Isso faz com que uma das principais bases do evento seja a colaboração.

Eu já sabia que isso seria um grande desafio pessoal pra mim. Sempre fui bastante individualista em meus projetos, preferindo dar conta de tudo sozinha a compartilhar a responsa e os resultados com outras pessoas.

Era de se esperar que já na fase dos preparativos, eu levasse a primeira rasteira.

Eu não conseguiria sobreviver sozinha

Mentira. Conseguiria, sim, mas seria muito mais difícil. Não tem nada pra comprar lá no deserto, você tem que levar absolutamente tudo de que vai precisar pra sobreviver. Isso inclui os 40 litros de água recomendados por pessoa pra semana toda; uma bicicleta, meio de transporte essencial nos 20 km² de evento; e alguma estrutura que faça sombra, afinal é um deserto e não tem sequer uma árvore pra botar a barraca embaixo.

Eu poderia ter alugado um carro pra levar tudo isso e meu problema estaria resolvido, mas sairia muito mais caro do que eu estava disposta a pagar, e dirigir e ficar mais de 10 horas na fila pra entrar seria muito mais cansativo do que eu estava disposta a aturar.

Preferi ir de ônibus, e não tinha como levar tudo isso e mais minha barraca, comida, roupas e outros itens dentro do limite de bagagem. A solução foi me unir a um dos vários theme camps, acampamentos temáticos que reúnem pessoas pra facilitar a vida de todos e a criação de coisas incríveis no deserto.

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Um acampamento é colaboração o tempo todo

Não é só pagar sua estadia e ser servido de forma impessoal, como se fosse um hotel. Você contribui com uma grana pra cobrir os custos de infraestrutura; colabora como pode com seu tempo e esforço; e se integra no grupo. As pessoas com quem você acampa são sua família por uma semana, e cada um faz a sua parte pra que todos fiquem seguros e felizes.

Os organizadores do meu acampamento, que moram na região e participam do evento todos os anos, levaram e montaram a infraestrutura: área coberta, cozinha, bicicletas, artes e até a água de todo mundo. Quem chegou depois (por exemplo, eu) manteve tudo limpo e organizado e desmontou a coisa toda no último dia. Meu trabalho específico, por exemplo, era ficar responsável pela reciclagem das latinhas de alumínio.

Mesmo antes de ir, só conversando com o pessoal do acampamento pelo nosso grupo do Facebook, sem conhecer ninguém pessoalmente, eu já pude ajudar a criar e organizar eventos e coisas legais pra oferecer pra comunidade. Já de cara percebi que, participando de um acampamento, eu seria capaz de colaborar com a cultura do Burning Man de formas que eu jamais conseguiria sozinha.

Esses acampamentos são a base do Burning Man

Já falei que são os participantes que constroem o evento, né? Imagina o quão chato seria se ele dependesse apenas do que cada um conseguisse fazer individualmente? É por isso que existem acampamentos pra tudo.

Muitos montam bares, trazem muita bebida pra distribuir pra todo mundo. Outros muitos montam toda uma estrutura de som e luz pros DJs tocarem e a galera dançar 24 horas. Outros trazem obras de arte extremamente complexas que precisam começar a ser montadas semanas antes do início do evento. Alguns se dedicam a criar experiências únicas, como um banho de espuma coletivo com todo mundo dançando pelado e DJ discotecando. Outros distribuem todo tipo de comida todos os dias pra centenas de pessoas.

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Daria pra alguém fazer tudo isso sozinho? Dificilmente. Essas coisas exigem muita grana e dão muito trabalho, exigem uma equipe. O Burning Man como ele é simplesmente não existiria se as pessoas não se reunissem em acampamentos para realizar as maiores bizarrices que a imaginação pode conceber.

No meu acampamento, organizamos dois grandes eventos: no primeiro, distribuímos mais de mil sanduíches de queijo grelhados. Todo mundo ficou feliz e bem alimentado, e a gente se divertiu horrores interagindo com as pessoas na fila ou ajudando na linha de montagem dos sanduíches.

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No segundo, fizemos uma “festa de casamento” pros casais que se casam no Burning Man (tem muitos!). Nesse dia, ainda contamos com a parceria de um outro acampamento que montou nada mais nada menos que uma confeitaria no meio do nada. Foi assim que conseguimos assar e decorar um bolo de casamento em pleno deserto.

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É tudo na base da economia da doação

Nada é comprado nem vendido dentro do Burning Man. Todas essas coisas maravilhosas que os acampamentos oferecem são doadas pra você. Não é escambo, é doação. Ninguém espera nada em troca.

Isso funciona num nível coletivo, porque todos os participantes de um acampamento colaboram com a grana e o trabalho pra fazer tudo acontecer.

Funciona também num nível mais individual. Se você tem duas canecas e o seu novo amigo não tem nenhuma, mas os dois querem pegar bebida no acampamento da esquina, é natural dar a caneca pro amigo.

Pra dar um exemplo mais maluco, fui num passeio de bike com 500 pessoas nuas e embriagadas sob o sol do meio-dia, e tinha gente distribuindo protetor solar pra que ninguém se queimasse, e gente distribuindo água pra ninguém passar mal.

E assim cada um vai doando o que pode pra que todos fiquem felizes. Sem esperar nada em troca.

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Até o lixo é responsabilidade de todos

Um dos “10 Princípios” do Burning Man é “não deixar rastros”. O deserto tem que ficar exatamente como estava antes do evento, como se nada tivesse acontecido. Isso é essencial pra que a organização consiga o alvará do governo americano pra realização do evento no ano seguinte, então essa consciência é levada muito a sério por todos.

O Guia de Sobrevivência do Burning Man, divulgado pela organização, já deixa bem claro: aqui não tem lixeira. Todos são responsáveis por levar seu lixo embora e causar o mínimo possível de dano ao solo.

Isso faz com que as pessoas levem o mínimo de lixo possível. Os bares não oferecem copos de plástico, por exemplo. Se você não levar seu próprio copo reutilizável, não adianta chorar, você vai ficar sem drinks.

Pra dar um outro exemplo, tomar banho é extremamente difícil porque você não pode simplesmente ficar em pé no chão e jogar um galão de água na cabeça, já que a água suja danifica o solo. Tem que pensar em todo um esquema pra recolher essa água e levá-la embora.

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Agora, com a quantidade absurda e totalmente desnecessária de lixo que cada um de nós produz em casa todos os dias, imagina o quanto seria difícil não deixar rastros se isso não fosse responsabilidade de todos?

A gente está muito mal acostumado a ver o nosso lixo simplesmente desaparecer na lixeira do prédio e deixar de ser problema nosso. No Burning Man, não dá pra manter essa ignorância. Cada guardanapo de papel que a gente usa é problema nosso.

Individualidade também conta

E muito. O mais impressionante do Burning Man é que as pessoas conseguem estar totalmente imersas na comunidade, participando e colaborando como podem, e ainda assim manter e exibir suas personalidades únicas.

Ninguém precisa se definir pelo grupo. Cada um pode ser e fazer o que quiser, contanto que respeite o limite da individualidade do próximo.

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Cada um pode (e deve) mostrar sua personalidade

Pra mim, que sempre tive tanta dificuldade em equilibrar o “eu” e o “grupo”, essas férias foram uma aula e tanto. Ser parte de algo coletivo não te obriga, de jeito nenhum, a eliminar a sua individualidade. E cuidar de si mesmo e fazer exatamente o que você quer não impede que você seja parte de algo muito maior.

Ainda estou digerindo tudo o que eu trouxe do deserto. Mas já me sinto um pouco mais desapegada das coisas pequenas e disposta a participar do que vai além de mim.

Se você se interessou e quer saber mais, no meu blog eu expliquei com mais detalhes o que é o Burning Man e como ele funciona; e também contei e postei ainda mais fotos da minha experiência no Burning Man 2015.

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